A Estrada de Salles e O Caminho de Si
A palavra – caminho – em seu significado literal é faixa de terreno, mas
também pode representar a vida que seguimos; os rumos que definimos para a
nossa destinação diante do que nos acontece.
O filme “Na Estrada” de Walter Salles, uma adaptação do livro de Jack
Kerouac, é o caminho do jovem escritor Sal Paradise, uma versão da vida do
próprio Kerouac, que após a morte de seu pai conhece Dean Mouriaty e passam a
compartilhar aventuras e desventuras na estrada durante cinco anos.
Embora Sal seja o narrador, a alma do filme é o seu amigo Dean, um rapaz
que vive a vida buscando se atordoar para se afastar de sua angústia.
Quantos criam uma vida extremamente intensa, tentando fugir de si
mesmos, como se pudessem se desconectar dos próprios sentimentos.
No mundo interno de Dean o outro é apenas um instrumento para realizar
seus desejos, não importando o quanto fere, o quanto desilude sonhos de quem o
ama.
Os “Deans” da vida para serem por nós reconhecidos exigem malícia, pois
não apresentam semblantes que carregam um punhal invisível capaz de machucar os
corações e os sonhos de quem deles se apegam.
Em torno deste personagem malicioso, sedutor está, Marylou a garota
fetiche de 16 anos, Carlo o poeta melancólico também apaixonado por Dean, o
escritor Sal e Camille sua mulher mãe de seus filhos. Para além desses, orbitam
outros personagens em seus mergulhos de desilusão perdas e rupturas, nos
sinalizando que a vida que vale a pena ser vivida é aquela em que uma pessoa se
apropria com determinação de sua trajetória.
Ao longo dos cinco anos dessa história, vamos percebendo o quanto Dean
não se sensibiliza com a dor do outro. Caberá a cada um, observar o que
acontece e tomar consciência da necessidade de agir para a preservação de si,
realizando a difícil tarefa de se desesperançar e desistir de um amor, de um
sonho e de uma amizade.
Pois é, difícil mas muitas vezes inevitável desistência.
Marylou o abandona ao desistir conquista-lo. Decide renunciar aos seus
sonhos apaixonantes e transgressores para ingressar na vida sublimada que o
princípio da realidade exige. Casa-se com um marinheiro para construir uma
família.
Este momento de Marylou é a representação do rito de passagem de um
sonho idealizado para a construção madura da vida. Para conseguirmos realizar
esta transição, precisamos como ela dar um adeus definitivo sem nos permitir
olharmos para trás. Exatamente o oposto da saída da mulher de Ló na destruição
de Sodoma... Se olharmos não querendo abandonar nossos antigos caminhos
paralisamos petrificados.
Camille, sua mulher, representa a ponderação e o desejo de Dean por uma
estrutura e estabilidade que a sua natureza neurótica o impede de manter-se.
Ela após intermináveis tentativas de compreensão, o expulsa de casa
definitivamente, num momento de resgate profundo de si mesma, quando percebe
que todos os recursos de tolerância a levariam para uma vida de solidão
acompanhada. Quantas pessoas se expõem a este duro contexto por não conseguirem
assumir o controle das próprias vidas.
Dean prossegue em sua coerência de indiferença e egoísmo até com o seu
grande parceiro Sal ao abandona-lo deixando-o no México inteiramente só, num
momento de absoluta fragilidade física. Sal se vê obrigado a realizar que
aquela amizade deveria ser rompida. As lágrimas que naquele instante correm
daqueles olhos desamparados, expressam a percepção que às vezes temos que não
podemos mais amar aquele amor.
Dean irá abandonar e desamparar a todos que o amam, num impulso de
repetição inconsciente do que o seu pai fez, desaparecer.
Aparecer e desaparecer, abandonar e ressurgir são os movimentos que o
seu inconsciente o faz viver.
Todos temos um Dean dentro de nós..
Igualmente, temos também um Sal...
A questão é: Qual deles está conduzindo você na estrada?
O filme fala forte sobre o desejo de liberdade, mas fala também sobre o
aprendizado que precisamos ter para retirarmos de nossos olhos a inocência em
pensarmos “que no fundo, bem no fundo, ele é bom”, para entender que às vezes a
bondade de uma pessoa está tão no fundo, coberta por inúmeras camadas de
egoísmo que ela não conseguirá surgir na vida. A bondade de Dean está soterrada
pelas suas neuroses.
Numa das últimas cenas do filme resume o que parece que Jack Kerouac
quis evidenciar como lição maior daquela estrada de cinco anos... ... Saindo de
sua casa para um show, Sal reencontra Dean após o México. Dean está
desamparado, só e tenta encontrar em Sal corrimão para se segurar diante do seu
já deteriorado e trôpego equilíbrio emocional. Sensibilizado, emocionado mas
firme em sua maturidade, Sal diz olhando nos olhos do ex-parceiro – “Gostaria
de não precisar ir ao show de Jazz, mas preciso ir”.
Existe uma expressão popular “Mandar-se dizer na estrada” que significa
ir embora, partir. Sair de um ponto para outro.
Tem momentos na vida que temos que tomar a decisão e o rumo que a razão
nos aponta, mesmo que nosso coração esteja reticente e balançado.
São os momentos que
precisamos como Sal “Mandar-se dizer na estrada” e partir para Pôr-se a Caminho
da Boa Direção.Assistir Na Estrada de Walter Salles com esses olhos psicanalíticos me fez apreciar muito este belo “on the road”.