Outro dia abri os olhos pela manhã e chovia. Resolvi ficar mais um pouco
deitado, sem aquela pressa que o céu azul às vezes nos impõe e fiquei a pensar
na pessoa que eu iria encontrar naquela semana após muito tempo.
Veio-me, neste devaneio dominical, o desenho da imagem dela no modo de
ser, suas cenas, interjeições, suscetibilidades, corte de cabelo e pensei num
sobressalto de percepção “Ela é a mesma desde sempre. Carrega numa valise
trancada de si todos os seus eternizados aspectos”.
Somos afinal prisioneiros deste si mesmo?
Somos fadados à prisão perpétua de nossos caracteres?
É certo que precisamos do hábito para estabelecer um cotidiano
produtivo, necessitamos também de coerência na nossa maneira de ser, no nosso
modo de pensar. Para não parecermos seres esquizoides, temos uma linearidade na
nossa edição diária de si mesmo.
Mas será que precisamos repetir todos os aspectos para sempre?
Uma vez li a declaração de um escritor que dizia que escrever um romance
e construir um personagem exige sair de si mesmo. Exigia dele pensar através da
ótica do contexto daquela história e o exercitava ver às vezes uma mesma
situação sob uma nova psicologia.
Esteve em Paraty para um debate na FLIP deste ano, a escritora americana
Jennifer Egan, que venceu o prêmio Pulitzer 2011 de ficção com “A Visita Cruel
do Tempo” e em entrevista declarou: “Eu sinto que em tudo que faço estou sempre
tentando evitar ao máximo o meu ponto de vista familiar demais” – e ela
prosseguiu – “Para mim, escrever é um tipo de fuga. Não no sentido negativo,
mas a diversão em escrever está na possibilidade de experimentar esse outro
ponto de vista”. E, concluiu: “É um desejo comum ao ser humano, o de poder se
tornar uma pessoa diferente por algum tempo”.
Queremos muito nos libertar de compromissos, pessoas, mas uma grande
liberdade a ser desejada e treinada é aquela de decretarmos a nossa liberdade
de experimentarmos um novo modo de ser no corpo, nas ideias, nos programas como
se estivéssemos delineando uma pessoa que diga um novo texto ao mesmo contexto,
diante de sua história.
Rotinas devem ser quebradas para experimentarmos o reacender do
paladar... Vamos ao cinema, ao teatro, mas não precisa ser só as sextas feiras.
Como alguns afirmam, “Para quebrarmos a rotina jantamos fora todos os sábados”.
Original, não? Podemos sempre recorrer a um novo filme, mas podemos também
experimentar uma nova estreia de si mesmo.
Mudamos móveis de lugar, mudamos cores nos tecidos, nas paredes, nos
carros, mas vivemos por vezes com a ideia de que nosso modo de ser não pode ser
modificado. Condenamos com isso a nossa alma a uma prisão perpétua de um
repertório rígido e único de pensar e de viver.
Se não posso modificar a pessoa que iria encontrar naquela semana, posso
transformar a que sou e que irá encontrá-la. Comecei logo pensando como um
escritor de mim mesmo diante de um novo capítulo da minha história:
– Na manhã que acordei, vi que o sol que me faz sempre levantar e
correr, naquele domingo estava oculto pelas nuvens e resolvi, como o céu,
pensar o meu dia de modo diferente, para não fazer a repetição sonolenta de mim
mesmo.
Mudar é libertar a nossa alma da prisão perpétua de um si sem transformação.
Mudar é libertar a nossa alma da prisão perpétua de um si sem transformação.