Numa tarde, estava no Leblon, meu celular toca e era a senhora que faz consertos de relógio, para me avisar que o meu já estava pronto. Perguntei se estaria com a loja aberta, afinal marcava quase cinco horas de um sábado. Respondeu-me que não precisaria me apressar, pois ficaria até mais tarde.
Ao chegar à loja, disse – “Pensei que a senhora não trabalhasse hoje após o meio dia. Sorte minha, senão eu só teria tempo na outra semana”. Ela então me falou – “Ah... Sr. Manoel... Trabalho até bem tarde, faço muitas coisas.” E, mudando um pouco o olhar de direção como se estivesse em contato com algo muito profundo, continuou – “Sabe... sou capaz de ficar aqui até às dez horas da noite. Assim... não penso no meu filho desaparecido há quinze anos... por mal de amor. Um dia, muito curvado, me disse tchau, saiu e nunca mais o localizamos. A partir desta época passei a trabalhar muito, criar muito”. E... olhando bem nos meus olhos me disse – “Não posso desaparecer com ele, não é Sr. Manoel?”
Há tempos a conheço e nunca percebi em seu semblante, uma história de dor. Ao contrário, ela sempre me tocou pela delicadeza e pelo senso de humor.
Ao sair da loja, fui me sentar num café para deixar esta tragédia ganhar forma em minhas reflexões. Em meus devaneios de elaboração daquela história, me lembrei da definição da psicanálise que havia colocado no quadro para as aulas da semana passada, que diz que a depressão se instala pela inércia da atividade psíquica diante da necessidade de uma reação a um fato doloroso, que leva uma pessoa a simbólica posição horizontal de inatividade.
Os fatos chegam e o choque do golpe emocional desmantela a nossa estrutura e essa ferida gera dor. A defesa contra a depressão origina-se da tentativa firme em realizar os chamados atos terapêuticos que representam a busca na luta contra a horizontalidade, através da verticalidade das ações.
Realizei, nesta reflexão do café, que a grande eficiência profissional da minha “Manutenciadora das horas” é o sábio dispositivo do qual ela recorre para não desaparecer com o seu filho no horizonte da dor.
Uma pessoa acometida por um golpe, sofrerá os hematomas psíquicos causados pelo impacto da realidade, mas ela apesar de tudo, deve tentar orientar os olhos para a vida.
Em entrevista para a revista Claudia de outubro, intitulada “Garoto aos 40”, Reynaldo Gianecchini, fala num trecho que durante os sete meses em que parou de trabalhar para cuidar do câncer, sofreu algumas transformações profundas e algumas irreversíveis. Como diz a jornalista que o entrevistou, “...uma das principais mudanças foi a forma de ver a vida. Antes da doença era comum que atravessasse o dia no piloto automático, sem dar bola para os bons momentos corriqueiros como a gentileza de um estranho, a beleza da praia ao anoitecer ou a música que toca no rádio do táxi.” Declarou que no momento em que se tornou possível, rápido entrou num ritmo frenético de trabalho: biografia, teatro, novela e afirma: “Este é um momento de tanta energia que quase me esqueço do que sentia ao entrar no hospital.”
O que ele nos revela ao final, demonstra bem que a história da dor permanece na pessoa, mas a saída terapêutica é dada, a partir do momento em que se desiste de girar em torno dela e que se decide dar continuidade a sua vida.
Fui convidado para ver a exposição “Impressionismo: Paris e a modernidade” que está no CCBB do Rio, onde pela primeira vez mais de oitenta e cinco obras do Musée d`Orsay estão expostas no Brasil.
Percorrendo as salas, me vi no Rio de Janeiro, diante de Gauguin, Monet, Pissarro, Degas, Van Gogh, Renoir, Cézanne, Lautrec, Latour, Sérusier, Duran, Bonnat, Sisley, Courbet e outros maravilhosos.
Diante das telas que retratam a modernidade que Paris vivia no período entre 1850 a 1914 tornando-a a capital mais evoluída da época, pensei nas paisagens internas de cada um desses artistas. Mergulhei em suas realidades psicológicas, nas dores e nas dificuldades de cada um. Mergulhei nos sofrimentos físicos de Lautrec, nas grandes crises de Van Gogh, nas inconstâncias de Courbet e outros com seus dilemas e pensei, que apesar de tudo estavam lá se mantendo na existência através dos desenvolvimentos das novas técnicas, entregues a vida no desejo de retrata-las.
Se pararmos para pensar, o que é viver senão a entrega na arte de criar sua tela de cada momento inspirado no seu progresso pessoal.
O que é viver senão a arte de concebê-la.
A senhora relojoeira não conseguirá zerar seu drama, Gianecchini, igualmente não apagará o susto e os momentos de tratamento, mas como os Impressionistas através do encontro de alguma arte pessoal de viver, se estabelecem um CHEGA a paralização e ajustam os relógios internos para as boas horas de cada hoje.
É com os ponteiros que andam no sentido do futuro, e que deixam para o ontem o que deve ficar com ele, é que devemos seguir.
É sempre hora de conceber uma nova cena da vida.
É sempre hora de se dar um CHEGA, de se dar um BASTA para não desaparecer no horizonte da sua dor.
Manoel Thomaz Carneiro
Querido Manoel.
ResponderExcluirNao tenho conseguido assistir suas ultimas aulas, mas compenso lendo suas cronicas.
Esta esta ESPECIAL, parabens!
Milton H.
Milton...Obrigado por manifestar o seu carinho.Tenho certeza que o seu Saber Sabido conquistado pelo seu desejo e dedicação tornam voce o Manutenciador das Boas Horas.
ResponderExcluirUm abraço,
Manoel Thomaz
Crônicas maravilhosas como sempre! Parabéns meu professor, a cada dia vc se supera com suas palavras tão profundas e sábias!
ResponderExcluirBj
Andrea
Andrea...Obrigado pelas paalvras.Tenho certeza que seus ponteiros estão marcando as boas.horas da sua existencia.Parabens pelo seu blog:sua arte, sua vida.
ExcluirUm beijo
Manoel Thomaz
Dor, quem não sente? Entregar-se a ela, isso seria aumenta-la, temos que vive-la o tempo certo, ela sempre tem um tempo...Procuro olhar meu horizonte de vida, sempre ha uma luz...é isso ai , professor, beijos e obrigada por mais um artigo. Sônia Severiano
ResponderExcluirSonia Como no mito da caverna de Platão, voce esta entre os que acreditam que alem da paisagem habitual existe um lugar. Um beijo
ExcluirManoel Thomaz
Oi Manoel
ResponderExcluirTão importante saber dar esse Basta e prosseguir. Na sua aula da semana passada, você nos ensinou muito bem, esse passo a passo.
Sorte dos alunos que assistiram essa aula, talvez a mais importante do ano.
Obrigada Manoel
Bjss
Angela
Angela..Tenho certeza que aprendeu o Basta...e assim avida segue.Obrigado pelas palavras..Um beijo
ExcluirManoel Thomaz
...seguir, seguir sempre, não por causa "de', mas apesar "de"...
ResponderExcluirManoel, não me canso de ler vc!rs
Sempre um insight!
Se eu morasse no Rio não iria perder uma só aula sua!rs
beijos e Obrigada!..Andréa J
Andréa
ExcluirQue o seus saltos de percepção sempre promovam em voce o caminho das horas inteiras...
Que como um relógio não se movimente nos "ontens" e nem se atrase ou mesmo se adiante.
Um beijo,
Manoel Thomaz
Manoel, saber perceber o momento exato de se reinventar depois de uma escolha honesta com a gente mesmo, até para poder SOBREviver, requer muita energia e um pacto com a nossa alma.
ResponderExcluirVc nos ensina com leveza e inúmeras possibilidades como fazer isso.
Obrigada
Stella
Stella
ExcluirUm Trato consigo, um trato com a mente, para tratar bem o que precisa ser bem tratado.
Obrigado pelas palavras.
Beijo,
Manoel Thomaz
Querido mestre.Não tenho sido assidua, mas adoro suas crõnicas. Obrigada por mais essa lição.Um Basta e um Recomeço é tudo.Gilda Edelsberg
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