Outro dia me lembrei de que contei na aula que há seis anos, estava num sábado à noite deitado mais ou menos a uma da manhã, quando comecei a ouvir um barulho de água. A princípio, devido ao silêncio da rua, pensei que fosse o ruído mais nítido da fonte que tenho num pátio, mas alguns minutos depois percebi que vinha de outra direção e resolvi seguir como se segue o fio de Ariadne que se desenrola no labirinto e cheguei a cozinha que havia se transformado num visual de efeito cascata.
Aquilo me tomou como se fosse um vazamento em mim e não comigo. De repente me veio um comando interno de potente ordem que me disse: “Eu não sou a cozinha... A água corre pelas paredes, não em mim”.
Tomei as providências urgentes e descobriu-se que vinha da caixa d’água. As bolhas no teto de gesso pareciam queimaduras de pele devido ao excesso de sol. Voltei para minha cama, liguei por acaso um canal italiano, me coloquei diante de um concurso de dança, e comecei a realizar uma profunda cisão entre “Eu e Isto”.
Esta elaboração incisiva que fazia comigo mesmo, me levou aos conceitos da psicanálise sobre a formação de nossa identidade sob as rédeas do inconsciente, onde tudo e todos que nos identificamos e até nos pertence se mesclam em nós. Assim se forma de modo imperceptível a pessoa que nos tornamos: Juntos e misturados.
Até o dinheiro que você possui, empresta e não é devolvido, causa o mal estar, pois um pedaço de sua constituição está faltante. Quando algo enguiça, parece que se enguiça junto. Uma pessoa sem atenção vigilante se torna a cozinha, o lavabo, o carro, se torna também o André que ela gosta, a Júlia, a Talita, o Maurício, o Júnior seu filho. Uma pessoa é a soma das identificações. Algo errado com um deles é vivido como se fosse integralmente um problema próprio e profundo.
Um dos grandes trabalhos psicológicos da vida humana é resgatar certo distanciamento desta simbiose, através da percepção consciente para se elaborar uma identidade preservada do mundo exterior, sem se fazer profundamente permeável e nem tampouco impermeável ao extremo.
As identificações são formas de enfeitar nossa vida, de construir um mundo personalizado. Uma vida sem elas é uma vida morrida, mas ao mesmo tempo uma pessoa tem que ser inteligente diante desta tendência a se perder no outro, a se perder nas coisas sem até mesmo saber quem é como indivíduo.
Na edição de Março da revista CLAUDIA, a atriz Cissa Guimarães fala que sua vontade é estar juntinho de seu filho Rafael, lá no céu, mas ao mesmo tempo sabe que nem ele iria gostar deste encontro fora do tempo. E diz que cabe a ela ficar bem bonita aqui na vida, de modo inclusive a ajudar outras tantas pessoas que passaram por perdas para que possam continuar na existência.
A Cissa trabalha esse resgate de si mesma diante da perda. Ela está no esforço contínuo, da atenção reflexiva para permanecer junto, sem estar psiquicamente misturada. Caso contrário, irá cometer o grande erro existencial de seguir o destino do outro.
O caminho da Cissa é o caminho que todos por razões diferentes têm que seguir para aprender a grande lição da vida – Juntos, bem juntos sem estarmos misturados. –
Quando saí do Shiatsu no sábado à tarde, chovia muito e apesar de adorar, aliás como poucos porque me identifico também com dias cinzentos, me protejo de ser regado pela chuva. Tirei da minha bolsa um guarda chuva. Assim estava nela, cercado de pingos sem ser ela.
Protegido, caminhei pela Visconde de Pirajá, onde meus tornozelos recebiam os respingos da água que batia na calçada, mas grande parte de mim deixava de ser a chuva. Continuei sendo eu, apesar dos molhados, dos encharcados de uma cozinha, das perdas, das distâncias que me separam de lugares e pessoas que amo.
Apesar dos enguiços faço uma “Assistência Técnica” contínua para permanecer com a Capacidade de Existir a Plena Eficiência.
Se proteger do real que chega junto e com força para se misturar exige de nós a intenção, a inserção na ideia, e o estímulo do contínuo uso.
Quem está na chuva é para se molhar, diz o ditado, mas... permanecer nela muito tempo traz até pneumonia.
Arrumei minha cozinha, repintei-a, refiz o teto e zerei os efeitos daquela noite. Um tempo depois em escala muito menor, tudo voltou a acontecer. Nada mais fiz externamente a não ser aprender que as imperfeições fazem parte da beleza.
Eu sigo assim. Você pode também.
Juntos e Misturados?
Nem sempre.
Imagens: GettyImages
Gostei muito da crônica. Refletirei sobre o tema e tentarei aplicá-lo em minha vida. Talvez assim eu possa apreciar a beleza de Berlim, mesmo na escuridão e na frieza do inverno europeu. Desse modo, não precisarei fundir minha alma às penumbras de Murnau...
ResponderExcluirmaravilhoso manoel. obrigada
ResponderExcluirAmei....Bjs.....
ResponderExcluirHoje, especialmente, me vi em seu texto. Comecei o dia no enguiço e com o decorrer dele, a simbiose se deu e virei o próprio enguiço,rsss. Quase ao final da tarde,já com o pescoço duro, parei e pensei sobre isso e tive a idéia de que, se eu continuasse a “ ser o problema com o problema”, eu não iria ser a solução. E as coisas começaram a clarear, tudo ficou muito mais leve! E agora, lendo vc, vejo que a “minha assistência técnica” foi bem eficiente, permitindo que viesse a tona a minha capacidade de existir! Manoel, pra variar, vc acerta sempre!!!rss, beijo e Obrigada, Andrea J
ResponderExcluir