Durante um jantar, uma amiga nos falou que poderia chamar o apartamento, que tinha conseguido comprar para a filha de “apertamento com varanda”. Rimos muito dessa nova concepção dos espaços: mais caros, menores, mas com varandas. Alguns chegam a ser incompreensíveis, sobretudo aqui no Rio.
Nossas residências são lugares onde vamos morar. Nelas cuidamos das nossas alegrias, tratamos nossas dores, projetamos vidas, renúncias, elaboramos desafetos e construímos afetos. São as nossas cavernas contemporâneas. Vamos nesse espaço agregar o que conquistamos e conviver intimamente com as pessoas inseridas.
Num dado momento dessa conversa, me transportei para outras paragens que falavam também de dimensões. Pousei-me nas inúmeras afirmações das pessoas sobre a sensação de “apertamento”. Escuto muito: “Me sinto sufocada na minha vida”... “Minha mãe me sufoca”... “Meu marido compete atenção com os nossos filhos e esta carência me oprime”... “Minha mulher requisita minha atenção constante”... “Meu chefe me sufoca”... “Meu irmão é um carente contínuo e me exaspera com as chantagens emocionais”...
De fato se em um ambiente falta ar nos sentimos sufocados. Inevitável sensação. Porém ela é positiva, pois sinaliza que algo necessita ser feito. As sensações são enunciados que precisam ser compreendidos.
Por que temos esta tendência ao sufocamento existencial?
Recorro a Freud na afirmação que somos buscadores de amor do outro, para que ao conquistarmos tenhamos a vivência subjetiva da sensação de valor.
Por essa razão digamos freudiana, tendemos se não prestarmos atenção a anularmos para conquistarmos os olhos de aprovação e amor.
Nessa busca de serem amadas para se sentirem valorizadas, as pessoas tendem a substituir as próprias necessidades ou desejos pelos os dos outros. Cedem às próprias vontades, abandonam os estilos pessoais, e engolem os tempos dedicados a si para se tornarem uma inclusão no desejo do outro.
Já colocou cem pessoas num apartamento de 70 metros quadrados? Fica objetivamente desconfortável. Preenchido, habitado é certo, mas entre tantas coisas o abarrotamento denuncia a falta de bom senso.
Há um filme francês chamado Augustine, com Vincent Lindon no papel do neurologista Charcot, um dos fundadores no século 19 do hospital parisiense La Salpêtrière onde Freud estagiou.
O filme se passa em 1885 e Augustine é uma jovem que trabalha numa casa de família e que luta para controlar os ataques que surgem no próprio corpo. O filme trata da história da histeria, um mal comum, uma doença misteriosa causada pela violenta repressão, sobretudo no mundo feminino. Se para a sociedade repressora do século 19, elas eram consideradas fingidoras, a doença se assim pode-se chamar, carrega um significado do inconsciente. Denuncia no sintoma o confinamento de pulsão, o risco de aniquilamento do sujeito e, portanto o sufocamento da alma. Em síntese simboliza a compressão de vida.
Nos séculos 16, 17, 18 e 19 eram comuns os ataques histéricos que pareciam por vezes epilepsia, com movimentos eróticos. Na idade média muitas foram queimadas vivas, pois eram consideradas mulheres endemoniadas.
Durante décadas as mulheres foram tolhidas e confinadas a funções sem qualquer liberdade de escolhas, de expressão de prazer ou a vivência dos talentos considerados exclusivo aos homens. Estavam vivas, mas destituídas do direito de existir na concepção plena da palavra. Sim... Condenadas no existir... Porque por vezes as pessoas não estão mortas, mas se mantém na vida morridas para si mesmas.
Filosoficamente o ataque histérico pode ser considerado como um modo de rasgar a couraça, uma luta para se salvar e expressar o premente risco de aniquilamento.
Quantas Augustines... Quantos Josés, Pedros e Mários que irrompem em depressões e em síndromes de paralização. São as falas das almas embebidas de repressões e mergulhadas nas tristezas em blocos profundos...
Recebi uma mensagem de um amigo psicanalista que dizia assim:
“...Diz o Nilton Bonder no Alma Imoral: Teria traição maior do que nunca existir para além da Tradição?” E a mensagem continua – “Cada vez me convenço mais que a depressão é um recado do sujeito, ou da criança que nos habita para sair do eterno luto de si mesma.”
Quantos desses ataques as pessoas vivenciam sem saberem interpretar ou reconhecer a verdadeira causa. Passam a vida nos apertamentos, confinados. Tornam-se almas encarceradas.
Elevador lotado é desagradável, mas ao menos é uma situação de minutos. Já pensou para crescer ou subir passar a existir apenas num elevador lotado? Fácil sentir o quanto seria desagradável e impossível.
Outros parecem estar a serviço permanente. Parecem comissários de bordo, num voo sem interrupção ou chegada, orientados a servir e olhar o outro: prontos, eficientes e rápidos. O que sobra para si? Servir e nada ser do sujeito.
O que decorre deste contexto?
O eu confinado começa a sentir sufocado, irritado e aprisiona a pessoa a querela, como um modo de reclamar, de clamar por algo...
Sabe aquele modo de ser irritado, reclamador, impaciente? Destruiu o eu para construir um superseu.
Se você tem um espaço para morar, o que diz o bom senso? Faça uma distribuição confortável de modo que tenha espaço de circulação... Diz-se também que tem que ser funcional, para funcionar.
Nossa alma também precisa de espaços de circulação, áreas íntimas onde se faz a limpeza, de portas fechadas, com direito a tempo...
Desnudadas estas almas se lavam, se perfumam para saírem para o mundo na vivência das relações...
Alma confinada se torna alma penada, que perambula pela vida, meio como diz-se em Saramandaia, “desbussolada”, sem direção, vagante...
Crie o espaço subjetivo do toalete, este momento seu, fundamental para a saúde da alma, crie também o prazer de romper as couraças e escolha filmes, pratos, cores e decore sua alma de si mesma também.
Viver em Apertamentos? Pode até ser, mas ao menos com varandas para respirar...
Crie suas varandas existenciais.
Imagens: GettyImages e Google
adorei! Beijoss
ResponderExcluirGe...vamos ampliar nosso existir
ExcluirUm beijo
Manoel
Suas Crônicas sempre decorando minha vida com novas perspectivas. Obrigada!
ResponderExcluirFernanda
ExcluirVarandas...para que nossos eus tenham o direito de existir.
Bj
Manoel
GOSTEI MUITO, MANOEL, RECONHECI NA SUA DESCRIÇÃO UMA AMIGA QUE SE ENCLAUSUROU E NÃO PERMITE O CONTATO PESSOAL, SÓ SE COMUNICA POR TEL E QUANDO ELA QUER. VIVE SOZINHA NUM GRANDE APTO (SEM VARANDA), DE FRENTE PARA O MAR, NUMA SOLIDÃO E DEPRESSÃO DA QUAL NÃO CONSEGUE SAIR. É UM CASO EXTREMO, MAS TODOS TEMOS OU TIVEMOS NOSSOS MOMENTOS ASSIM. AINDA BEM QUE CONSEGUIMOS SAIR, POIS LÁ FORA A VIDA NOS CHAMA PARA CUIDAR DAQUELES QUE AMAMOS E É PRECISO ESTAR BEM PARA ISTO, NÃO É? UM BEIJO GRANDE, VC SEMPRER AJUDA A PENSAR.
ResponderExcluirElisa...
ExcluirA vida nos chama, e a alma clama que a cuidemos para que possamos inserir sem se destruir ou mesmo destruir...
Obrigado
Um beijo,
Manoel
Nossa, que profundo, Manoel.
ResponderExcluirAinda bem que tenho esse seu saber toda a semana!
Bjs
Denise
ExcluirRefletir para ser expansão...
Um Beijo,
Manoel
Manoel, adorei essa crônica. Acabei de me mudar para um "apertamento" (por opção), três vezes menor do que eu morava e estou super contente. Para mim isso significa um desapego e aproveito para fazer uma revisão da minha vida e tento tomar decisões acertadas para o futuro. Meu espaço exterior fica menor mas o meu interior se expande.
ResponderExcluirAbrç,
Como sua alma deve estar grata nesse seu investimento...Dimensões internas...varandas para a alma se oxigenar.
ExcluirAbraços
Manoel
O que e egoismo e o que e ceder as proprias vontades ? eu vou a praia e ela ver um fime do Godard ! ela vai visitar a mae e eu tomar chop com amigos !! impossivel viver sem ceder as proprias vontades, ou opte em viver so num APERTAMENTO.
ResponderExcluirClaudio
Ceder diante das coisas que prejudique ao outro..
ExcluirCeder aos desejos mais banais,,,
pois relação envolve o outro...Mas envolve ao si de cada um.
Um Abraço
Obrigado por partilhar suas reflexões
Manoel