Fui assistir no Teatro Poeira a peça “Incêndios” com Marieta Severo que é a protagonista numa montagem excepcional de Aderbal Freire Filho.
A peça, como a própria sinopse define, pode, de fato, ser considerada uma tragédia épica contemporânea. O texto que já encontrou montagens teatrais no mundo inteiro com muitíssimo sucesso, com uma versão cinematográfica que obteve indicação ao Oscar na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, é considerado por diversos estudiosos do teatro como um dos mais importantes escritos devido a capacidade de transportar quem assiste a diversos climas que vão desde as reflexões filosóficas até as mais brutais e catárticas atitudes.
Conforme o dramaturgo libanês-canadense Wajdi Mouawad, primeiro a montar este texto, afirmou: “Incêndios não é propriamente uma peça sobre a guerra é, sim, uma peça sobre promessas... sobre tentativas desesperadas de consolo, sobre maneiras de se permanecer humano num contexto desumano”.
A história passa por muitos aspectos.
Contar uma história como afirmou o Mouawad, “Talvez nos obrigue a escolher um início. Talvez o início da peça possa ser marcado pela morte de uma mulher e ela será em breve enterrada e toda a trama se abre a partir dos últimos desejos endereçados a Jeanne e Simon, seus filhos gêmeos”.
Nas linhas do testamento estão os pedidos para que encontrassem o pai deles e o irmão que não conheciam e, ao encontra-los a filha entregasse a carta ao pai e o filho uma outra ao irmão... A partir daí a busca desenrolará todo o novelo dramático da vida de Nawal.
Através dos olhos investigadores dos jovens gêmeos, descobrimos o início do incêndio no destino de Nawal, quando ainda adolescente se vê obrigada pela mãe a abandonar o amor e passar toda a gravidez escondida em casa para quando a criança nascesse fosse entregue ao destino sem mãos acolhedoras.
Nesse momento brutal da personagem de perda sem mortes, mas por interdições diz “Enfiei uma faca na garganta da juventude”.
Nesse momento Nawal perdeu a inocência da infância... Há sempre um momento na vida de cada um de nós que perdemos a inocência da infância pela primeira vez...
Para não se perder nesses momentos de ingressão ao olhar mais árido da vida, devemos estar atentos a reconstrução de sonhos e destinações.
A nova destinação no percurso de Nawal após esta tragédia imposta pelo moralismo é calcada pela obstinação por aprender a resistir e dar seguimento a própria vida através também do propósito de reencontrar esse filho que a obrigaram a abandoná-lo.
Hoje me coloquei estimulado pela peça a pensar sobre o curso que iniciei “Capacidade de Amar- Formas” em que na primeira aula falo sobre a constituição inicial de nosso psiquismo. Para compreendê-la devemos ir até a raiz da nossa formação, na vida intrauterina. Somos no princípio psíquico um nada que se transforma em criatura e passamos nove meses ali naquele dentro paradisíaco sem “incêndios”, numa situação de aconchego e sem esperas, com tudo que precisamos.
Nascer é antes de tudo perder este paraíso, é perder essa sensação de amparo e aconchego que se chama em psicanálise o “trauma do nascimento”.
Nascemos para uma vida plena de riscos, mas igualmente plena de possibilidades internas de se estabelecer modos de prosseguir nela.
Nascemos com uma falta que se instala e todos os nossos movimentos na vida são formas diversas de reeditar um pouco o acolhimento, o aconchego a aceitação e a inserção em um núcleo através dos encontros que podemos realizar.
A nossa falta inicial do que já um dia então tivemos sem exceção, pois todos tiveram esta realidade na vida intrauterina, deve ser compreendida como a mola percursora de estímulos para buscar o encontro com a sensação de acolhimento. Uma busca que nos põe em busca, que nos propicia um sentido e uma direção na existência.
Portanto quando perdemos por um “incêndio” do destino algo importante para nós, devemos reeditar a força implícita em nosso psiquismo de busca e deixar de lado a vontade de ser buscado... A atitude tem que ser conjugada no verbo na primeira pessoa do singular no “Eu busco”. Se o Antigo Testamento fala que a vida começa pelo verbo, devemos compreender que também para recomeça-la devemos nos inserir no verbo que nos fala de um Eu, na imagem e semelhança da força criadora e mantenedora.
A desamparada Nawal quando foi obrigada a romper e desistir do rapaz que ela amava e ainda entregar o próprio filho recém-nascido, para conseguir prosseguir na realidade que a acometia, se agarrou ao pedido da avó: “Saia desta cidade. Vá embora. Aprenda a ler, escrever e a pensar”.
Assim Nawal habitou seus vazios com os pedidos internalizados da avó e constituiu um propósito para seguir... Conduziu a si através da comunhão do pedido de alguém. Internalizou um propósito que dava sentido a continuidade.
Tomei este momento como uma lição de vida definitiva e me reconheci em muitos estágios de recomeços em minha vida.
Ao se perder alguém ou tudo, deve-se colocar uma voz internalizada de presença afetiva orientadora de continuidade, deve-se também aprender a ler os novos caminhos para que se constituam as escritas da direção a seguir e através destas etapas possa então pensar em viver.
Após um tempo Nawal se transforma na mulher que canta, ao perder de vista a amiga e companheira da busca que cantava. Colocou como disse: “A voz da outra em si” e se fez mais uma vez na solidão ser internamente acompanhada para suportar a sucessão de “incêndios” dramáticos que ocorreram na vida. Tentou apaga-los sempre com o suor da luta em prosseguir.
Pensei ali em meio aquela densidade do texto que as pessoas normalmente têm muito medo dos acontecimentos, mas deveriam prestar atenção em como estão acontecendo diante de si mesmo e em si.
É uma peça para se pensar...
Pensei nas pessoas que incendeiam os momentos e as oportunidades de recomeços.
Pensei nas pessoas que incendeiam as manhãs, incendeiam as viagens cotidianas...
Pensei também nas que incendeiam as amizades e os bons diálogos...
Há outras que incendeiam a saúde...
Há aquelas que incendeiam a gratidão...
Há as que incendeiam tudo ao redor...
Têm pessoas que não gostam de ver dramas teatrais e não os assistem, mas fazem os incêndios nas próprias realidades sem a construção das portas de emergência...
Você já parou para pensar?
Há sempre uma saída.
Pode não ser a habitual, mas há sempre uma saída de emergência em si a espera de salvar...
Veja bem se já está na hora de apagar algum incêndio...
Como nos rituais de enterro mostrado na peça, joga-se balde de água nos corpos ardidos e mortos.
No corpo subjetivo em chamas que queimam as boas visões das atitudes inteligentes, o que fazer?... Jogue água.
Incêndios?
Apague-os!
Se não conseguir recorra ao corpo de bombeiro para ajudar...
“Da alma em fogo, me sai da vista um rio.
Agora espero, agora desconfio.
Agora desvario, agora acerto.”
Muito obrigada. Minha alma precisava ler isso hoje, vou checar as portas de emergência.
ResponderExcluirSaídas para a continuidade da existência..
ExcluirIsso mesmo...
Um Abraço,
Manoel
Manoel,
ResponderExcluirSuas palavras me transportam a reflexões e trazem leveza aos meus dias. Que nosso bondoso Deus continue derramando bênçãos sobre ti, sempre!
Sinceramente,
Sheyla Ramos.
Sheyla
ExcluirIdeias são narrativas por vezes bem balizadoras..
Quando desejamos podemos pensar a vida sempre..
Um abraço
Manoel
Penso nos "incêndios" como uma oportunidade de renovação. Tal como acontece na natureza, é preciso queimar para que a terra reviva, adubada pelas cinzas. Podemos refletir também sobre o símbolo da fênix, que renasce continuamente das próprias cinzas. O que nos parece uma grande perda hoje, amanhã se revela um novo caminho para outros ganhos. Temos que ter fé para superar o medo do desconhecido, confiança para perseverar e coragem para mudar. Este seu artigo é fundamental, a peça deve ser muito boa também,vou fazer força para assisti-la. Obrigado mais uma vez pela reflexão.
ResponderExcluirElisa
Excluir"Aprender a ler, a escrever e a pensar"
A avó de Nawal fala com sabedoria...
Ler a vida
Escreve a propria destinação diante do destino
para pensar no possível do amor
Um beijo
Manoel
Abra a gaiola e alce um voo,por vezes incerto,por vezes rápido até demais,mas não desista dessa liberdade...as vezes até surpreendente..um lugar,o seu lugar surgirá...
ResponderExcluirLindo, lindo..Pena que eu fique sem saber a autoria desse poema...
ExcluirAbraço,
Manoel
Assisti a esta peça. Retirei muita sabedoria dela para APAGAR MEUS INCÊNDIOS INTERNOS! Há cortinas em teatros que passam por tratamento anti-chamas. Ir ao teatro e assistir a peças como "INCÊNDIOS" é passar por preparo contro fogo no mundo INCENDIÁRIO!
ResponderExcluirO texto deste blog também me deu novos ensinamentos anti-fogo. Muito obrigado autor do texto.